quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Porto de águas fecundas

Debruçada sobre o peitoril de um antigo casarão do centro histórico de Olinda, acompanhada do meu netbook, aprecio as faxadas coloniais e as ladeiras da cidade, enquanto observo a multidão, sob os últimos raios do sol que se despede, descer apressada em direção à Praça do Carmo, onde acontece a Fliporto. Ver Olinda assim do alto é um privilégio... as ruelas, os azulejos, o patrimônio histórico, que no século XVII era cenário de holandeses, agora abrigam viajantes outros em busca de alargar os horizontes para a inestimável contribuição dos judeus no Nordeste.

Tendo como tema a "A literatura judaica e o mundo íbero-americano", a sexta edição da Festa Literária Internacional de Pernambuco, que aconteceu entre os dias 12 a 15 de novembro, homenageou Clarice Lispector, a brasileiríssima escritora judia de origem ucraniana que viveu no Recife até a adolescência. A festa deixou em êxtase todos que passaram pela centenária Olinda nesse último final de semana. A diversidade de atrações que a sua programação contemplou, desde debates, sessões de autógrafos, exibição de filmes, cursos de gastronomia a uma feira de livros, que exibia mais de cem mil títulos, fez daquela cidade um porto perfeito para o "escambo de experiências e conhecimento", como bem disse Antônio Campos. Por ali desfilaram nomes importantes da intelectualidade brasileira e mundial, presenteando-nos com idéias afinadas, algumas vazes polêmicas e controversas, mas sempre ricas e fecundas. Durante quatro dias, imagens, palavras, sabores e melodias constituíram um mar infinito de criação que transformou Olinda num porto seguro para as aspirações de mentes mais inquietas e exigentes.

O bate papo informal de Camille Paglia à mesa com Marcia Tiburi e Gunter Axt, o diálogo de Benjamin Moser e Nadia Batela Gotlib em torno de Clarice Lispector, a reunião do renomado escritor e psicanalista Contardo Calligaris, com os premiados autores João Tordo e Ronado Wrobel, e a brilhante conferência de Alberto Manguel foram, na minha perspectiva, os pontos altos da Fliporto.

De resto, fica a sugestão às autoridades para que os nossos espaços públicos, praças e jardins, se tornem também palco de eventos desse tipo. Já começo a imaginar a Lagoa, rodeada de tendas, propiciando o debate de idéias em torno das grandes questões contemporâneas, que nos afligem, nos provocam e nos convocam...

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Autorretrato

Há 26 anos, nestas terras do Cabo Branco, eu nasci, fruto do casamento de um engenheiro civil e uma professora de filosofia, cujo principal legado, transmitido aos seus três filhos, tem sido a formação acadêmica e a sólida educação moral.

Cheguei quando meus irmãos, Marcílio e Marcelo, tinham, respectivamente, 13 e 10 anos, imersa em um ambiente repleto de muito amor e cercada do que a vida pode oferecer de melhor: doces, uma biblioteca repleta de títulos, música e poesia. Não direi, como muitos, que foi amor demais, pois mamãe também me ensinou que amor nunca é demais, especialmente quando se trata daquele amor que de tão pleno, tão forte e verdadeiro conduz à liberdade.

Na infância, tive o privilégio de passar as férias na casa dos meus avós, Paulo e Nevinha Aquino, ao lado de quem muito aprendi. Dele, herdei o gosto pela literatura, a disciplina para os estudos, a fé em Deus. Dela, sobrevieram-me a perene alegria, a paixão pela vida.

A ruptura da adolescência se deu em 2003 com a aprovação no vestibular e o ingresso nas faculdades de Direito e Filosofia. Em 2005, a ida à França, o encontro antecipado com a maturidade, a descoberta do absolutamente novo e a lembrança das palavras de mamãe, repetindo os versos de Fernando Pessoa, na nossa despedida no aeroporto: “Quem quer passar além do Bojador tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas foi nele que espelhou o céu.”

A conclusão da faculdade possibilitou-me a entrada no mestrado de Filosofia, o estudo de David Hume e das paixões como fundamento das ações humanas, o início da realização profissional e o encontro com Aníbal.

E agora, onde me encontro? Como uma tecelã, digo que estou ainda bem no comecinho da tessitura da malha da vida... Hoje, noiva de Aníbal, advogada e professora.Tudo isso faz parte de mim, mas não me reduzo a isso. Não me limito a isso. Na verdade, continuo sendo a mesma menina sonhadora que escrevia no seu diário de folhas cor de rosa e muito mais.

Hoje, no meu aniversário, não diria como Pablo Neruda: “confesso que vivi”. Mas, que estou vivendo com a intensidade que a vida requer e, se fosse caso de escolha, escolheria viver tudo novamente...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Parisianismo


Escrevo ao som da melodiosa voz de Maria Rita na canção “Encontros e Despedidas”, de Milton Nascimento: “Coisa que gosto é poder partir sem ter planos”.
A música me levou àquela manhã de primavera... Saltei do trem quando o relógio da Gare de Lyon anunciava nove horas e trinta e oito minutos. Nesse instante, senti pela primeira vez um pouco do sabor da liberdade absoluta. Um sabor nem sempre agradável, pois a primeira sensação ao chegar sozinha à estação foi desejar o abraço apertado de alguém que estivesse ali me esperando, tal como a personagem da canção: “me dê um abraço, venha me apertar, tô chegando”... Procurei sufocar o sentimento acreditando ser ele apenas o reflexo de uma solitária saudade acumulada após oito meses na França.
Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação”. Desci as escadarias, dirigi-me ao guichê, comprei uma Carte Orange para três dias, tomei o metrô em sentido La Defense e desci na estação Louvre-Rivoli.
Flashes de recordações começaram a me perseguir por todo o itinerário até o hotel, localizado na Rue Jean-Jacques Rousseau. Primeiro arrondissement: o coração da cidade! Confesso que ao encontrá-lo, não contive algumas lágrimas. Percebi a feliz coincidência de ter feito uma reserva onde, anos antes, hospedara-me com meus pais, em minha primeira visita à Paris. "Tem gente que vem e quer voltar,(...) tem gente a sorrir e a chorar".
Após me acomodar no quinto andar, na “chambre 53” de um corredor repleto enormes janelas que mostravam os telhados da cidade, sai para dar uma volta. Rue Sant Honoré, Rue de Rivoli, Rue du Louvre, Place de la Comédie Française, Palais Royal: tudo isso estava em meu entorno e me fascinava. Apesar da chuva fina que caia e assinalava o final do inverno, voltar a Paris era um motivo de prazer manso e profundo contentamento.
A cada passo, comecei a ser tocada pelo indelével e secular charme da cidade, marcado pelo contraste entre a riqueza do seu patrimônio histórico e a simplicidade dos seus cafés, sem falar do inegável tom cosmopolita encontrado na culinária, na moda de cada esquina, nas diferentes línguas que escutamos nas ruas e nas feições, sobretudo orientais, que enchem as principais boutiques e perfumarias da cidade. Ingleses, espanhóis, japoneses, máquinas fotográficas e dólares são tão Paris quanto a Torre Eiffel, o Sena e o Arco do Triunfo.
Ao final do terceiro dia, como uma despreocupada “flâneuse” e rendida ao sentimento de parisianismo que inspirou e atraiu inúmeros artistas e intelectuais à Cidade Luz, comi um sanduíche de salmão no Café Deux Magots e comprei a edição baratinha de “Ferragus”, de Balzac. Em torno de cinco e meia da tarde, atravessei o Sena pela “Pont des Artistes” e voltei à estação para tomar o trem de volta pra casa. No percurso, devorei o primeiro capitulo da obra, intitulado “Madame Jules”, no qual o autor descreve minuciosamente o perfil das ruas parisienses e dos seus freqüentadores, no inicio do século XIX.
Os versos da música agora me dizem: “a hora do encontro é também de despedida”. Afinal, "chegar e partir são só dois lados da mesma viagem”...

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A lembrança é o recanto da saudade...

Acordei recordando que um dos meus programas favoritos, quando estudante na França, era aproveitar as manhãs ensolaradas de domingo para ir a “La Brocante”, um mercado público itinerante também conhecido como Feira de Antigüidades, “Marché de Puces” ou “Flohmarkt”, no qual famílias armam uma mesinha para vender objetos pessoais de que não se servem mais. Lá, a gente encontra desde roupas e bijuterias a discos, brinquedos, candelabros, porcelanas, faqueiros e livros, raros ou antigos.
A diversão e o inusitado do passeio é a coincidência de nos depararmos com os próprios donos das quinquilharias que, muitas vezes, acabam nos contando um pouco da historia daquela antiga peça. Encontramos crianças vendendo coleções de bonecas e jogos de vídeo-game, e fazendo a boa propaganda para os novos jovens compradores; senhoras de cabelos grisalhos desfazendo-se dos cristais e pratarias; fashionistas à procura dos modelos mais usados (e ousados!) de calça jeans “Levis” e tênis “All star”, cinqüentões expondo suas furadeiras, ferramentas e instrumentos de jardinagem em perfeito estado de conservação. Em síntese, todos estão com um largo sorriso no rosto: uns porque venderam o que consideravam inutilidades e outros porque compraram tesouros por uma boa pechincha!
Na verdade, a primeira vez que fui a um mercado como aquele tinha onze anos e acabava de chegar em Brugges com meus pais. Ainda me lembro da alegria que senti quando comprei um urso de pelúcia enorme, negociado por uma garotinha e seus irmãos num parque próximo à estação de trens. Alguns anos depois, em um Flohmarkt de Berlim, também comprei um sobretudo bege, da marca Adler, semelhante ao que Ingrid Bergman usou em Casablanca, que preservo até hoje como uma verdadeira relíquia!
Morando na França, não poderia ser diferente. Divertia-me nas ruelas dos mercados, descobrindo fascinada cada história guardada nos inúmeros objetos do mundo das Brocantes. Os "petits souvenirs, pas chers" garimpados nessas andanças transformaram o meu quarto num mundinho de significativas recordações… Entre os meus achados prediletos estão duas antigas caixinhas de madeira de charutos cubanos Ramon Allones, ainda com o timbre de importação de uma empresa de Genebra e adornadas com uma gravura de “Romeo y Julieta”, um encantador cartão postal naïf de uma boulangerie parisiense, um pequeno porta-jóias da secular fabrica de porcelana Villeroy & Boch, um castiçal de cristal de Reims (adquirido por um Euro e pela escuta de uma bela história de amor!), um livrinho de culinária com molduras art-nouveau realçando o menu de cada dia e, por último, um CD do charmoso Patrick Bruel.
Foi com mamãe que aprendi a enxergar a beleza e a magia pulsante dos mercados públicos... e tudo isso serviu para a construção da melhor parte do que sou hoje...

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O valor do silêncio

O que mais se discutiu nos sites de política das últimas semanas foi a declaração da assessoria de imprensa de um dos candidatos à chefia do Executivo que ele não mais participaria de debates na televisão. E, segundo jornalistas de canetas afiadas, o motivo da declaração é a sua possível queda nas pesquisas diante da inaptidão que o candidato tem para dominar o tempo das respostas, além de escorregar no português. Pra completar, outros segmentos da imprensa alegaram que o não comparecimento se daria pela falta de ousadia e coragem para enfrentar seu oponente.
A enxurrada de notícias só me fez lembrar dos embates entre Sócrates e os sofistas gregos; estes últimos conhecidos pelas suas habilidades retóricas e argumentativas, e preocupados, muito mais, com o poder do que com a verdade.
Por isso, eu, que já plantei girassóis no meu jardim, vejo-me agora instigada a refletir sobre a coragem, confrontando-a com a honra, bem própria dos heróis das epopéias homéricas.
Seria uma expressão de coragem alguém conquistar o meu voto e o voto de mais de 262 mil eleitores da cidade, por levantar a bandeira da justiça-social, vestir a camisa laranja da honestidade, regar com esperança a vastidão dos girassóis, símbolos da liberdade de um povo e, subitamente, fazer uma contraditória e inexplicável aliança com opositores de alma e de idéias?
Seria corajoso desviar-se das veredas das virtudes políticas para tomar os atalhos sombrios dos vícios da politicagem? Seria, ainda, corajoso negar luz e calor a girassóis em florescência, pretender que definhem como plantas mirradas e sem vida, abrindo a insetos e serpentes as porteiras do mesmo campo onde outrora proliferavam flores?
Assim, superada a decepção e a tristeza, entendo agora que escorregões ocasionais na linguagem não impedem um candidato, ou melhor, um jardineiro, de fazer a sementeira, cuidar do seu canteiro e realizar as suas obras. Não podemos esquecer que embora uma bela arte, a retórica abriga sempre o perigo de manipular e enganar, se o sofista assim o quiser.
Por isso, penso ser melhor o cuidado mudo de um jardineiro simples, cuja honra é um valor que ainda preserva, do que a requintada oratória, o barulho inflamado e o grasnar ensandecido de corvos em aliança.
Afinal, é no silêncio que um jardineiro cuida de sua seara. É no silêncio que um mestre de obras trabalha o seu canteiro. É no silêncio que as urnas respondem à infidelidade de um líder ao povo que nele confiou e por ele se fez representar...

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um novo “águia”

Há algum tempo, instalou-se em nossa cidade um agradável restaurante de cozinha portuguesa. Digo agradável em todos os aspectos: desde a decoração à música. Um Galo de Barcelos gigante à entrada, quadros e ilustrações com temas portugueses nas paredes e mesas, e uma fadista que desfia a sonoridade de amores e dissabores a noite inteira para os clientes são partes das peculiaridades desse lugar. Os deliciosos vinhos do Porto, assim como o bolinho de bacalhau e o pastel de Belém enriquecem a gastronomia lusófila do ambiente e nos fazem mergulhar, ainda mais, na atmosfera e no charme do país de Camões, Pessoa, Saramago e Amália Rodrigues.
Mas não foi dos poetas, do renomado escritor ou da artista que a ida ao restaurante me fez recordar. Lembrei-me, com saudade, dos dias que passei em Coimbra na companhia dele e de sua esposa, durante o período em que ele cursava o doutoramento naquela vetusta e tradicional universidade.
Naquela mesa, sem dúvida, faltava ele, com a sua perene alegria, seu aprimorado bom gosto gastronômico, sua elegância de gestos e sua bagagem repleta de estórias bem humoradas oriundas de encontros com personalidades como Xanana Gusmão no Timor Leste, pesquisadores na Bulgária, juristas do Tribunal de Luxemburgo, colegas professores de universidades como Harvard, Instituto Europeu de Florença, Frei Universität de Berlim, entre outros panteões do direito mundial.
O motivo de sua ausência neste final de semana foi a ida à terra de Erasmo, de Van Gogh, dos moinhos de vento e do Gouda para participar da “74th Conference of the International Law Association” que tem como tema “De Iure Humanitatis: Peace, Justice and International Law”.
Ali, quase noventa anos depois de Epitácio Pessoa, que em 1923 foi juiz da Corte Internacional de Justiça em Haia, outro nordestino e descendente daquele marcava presença. Como um novo “águia” das terras do Cabo Branco, alçou vôo para levar a palavra paraibana à douta assembléia internacional, reunida para discutir as importantes questões que nosso tempo coloca sobre a Justiça e os Direitos Humanos.
Assim, concluo o texto em sua homenagem. Não somente pelas afinidades e interesses que nos unem no mundo jurídico e filosófico, nem tampouco como a ouvinte atenta que aprendi a ser ao longo da convivência com o Prof. Dr. Marcílio Toscano Franca Filho, “um jurista de formação acadêmica e profissional consolidada, além de pessoa de indiscutível densidade intelectual”, no dizer de Rubens Nóbrega. Concluo, muito mais, como uma irmã orgulhosa que reserva para ele hoje um abraço de boas-vindas, transmutado em palavras, pela freqüente incapacidade que nós humanos temos de conter as emoções e os sentimentos quando são grandes demais...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Diversidades

Hoje quero tentar descrever apenas a descoberta de uma sensação que me acompanhou nos últimos dias, forte o suficiente para me levar a compor mais um artigo.
Confesso que o que me atrai até aqui é uma inquietude no espírito… uma agitação na alma… um ímpeto que me leva a abrir o laptop e permitir que algumas palavras erupcionem do papel.
Percebi que desde que comecei a expor minhas descobertas do mundo, sou tomada por sensações semelhantes: pulsões... impulsos para dar vida a uma folha em branco, ao escrever minhas impressões diante da fascinante descoberta de um mundo tão rico em diversidades. Diversidades digitais, culturais, naturais e sensitivas.
E, ao falar sobre a “diversidade digital”, lembro-me de algo que sempre me chamou bastante atenção quando morava na França: o fato de presenciar tão de perto o avanço tecnológico. Pois, mesmo estando nós inseridos na famigerada era da globalização, é evidente que a nossa pacata João Pessoa ainda esta distante de acompanhar o ritmo acelerado de tais inovações.
Com efeito, recordo-me do meu “espanto” quando, há cerca de cinco anos, me defrontei com um GPS pela primeira vez. Saia de uma bela exposição do nosso Flavio (Tavares), na Universidade Lyon 3, e fui levada pra casa no carro de um casal amigo.
Naquela noite, logo em seguida à pergunta do condutor do veículo sobre meu endereço, fui surpreendida com uma voz eletrônica que dizia: "tournez à gauche" e "allez tout droit". Minutos depois, boquiaberta, fui deixada na porta de casa!
Acho que a descoberta da tecnologia tem me causado um espanto que só é possível ser comparado com aquele dos primeiros gregos diante da fascinante dinâmica do mundo. Aliás, esse espanto frente à existência é uma sensação que me acompanha e me faz lembrar dos versos de Fernando Pessoa ao afirmar que "o existir existe e não se explica".
Assim, vou terminando o texto desta terça-feira esforçando-me para não mais tentar entender o funcionamento do bluetooth, o que vem a ser o formato mp5, qual será o tamanho físico de um mega, ou como seria tecer uma rede sem fios.
E mergulhada num tempo de desmaterialização das coisas, concluo apenas com o objetivo de materializar minhas palavras e meus sentimentos face a esse mundo, de certo modo, assustadoramente novo…

terça-feira, 27 de julho de 2010

Desencantamento

Ah, como eu me divirto desvelando as inúmeras faces que o mundo encobre. Como é bom perceber as dissimilitudes de cada indivíduo e sentir-se, ligeiramente, tocada por elas.
Outro dia, fui convidada para participar de um jantar com bruxas. Pasmem, é a mais pura verdade!
O banquete transcorreu em um belo castelo à beira mar, ornamentado com abóboras luminosas no jardim. A mansão abrigava ainda um imenso lago azul e diversas tendas para comportar as eufóricas convidadas e a animada orquestra.
Todo o entorno me parecia muito escabroso, porém a cena mais grotesca e terrificante ocorreu algumas horas após o início da festa: dezenas delas, jovens e idosas, portando vassouras e trajadas em cores vivas, como o púrpura e o escarlate, dançavam ritualisticamente entre si e em torno do grande caldeirão, do qual exalava uma densa nuvem de fumaça.
Vale salientar que não traziam maçãs enfeitiçadas. Substituíram-nas por IPhone’s de última geração que, em segundos, podem seduzir seus alvos à distância.
Inebriadas, a maioria delas segurava um copo, o qual se agitava no ritmo da música, contendo cubos de gelo e uma misteriosa poção dourada que, aos poucos, elas iam ingerindo. A cada gole, o esplendor e a grandeza da festa se espalhavam entre os comensais.
Fisicamente, elas pareciam assustar e amedrontar os mortais. Unhas pontiagudas, excesso de maquiagem na face, sobrancelhas tatuadas, ácido hialurônico nos lábios, expressões botox-modificadas e pelancas, muitas pelancas, que disputavam um lugar entre as transparências e os decotes mais ousados.
Nada de chapéus pontudos: as bruxas contemporâneas os deixaram de lado para exibir suas longas madeixas blondes, sob o encanto da escovas progressivas.
O pior aconteceu à meia noite. Neste instante, a magia expirou. Descobriu-se que interiormente elas eram vazias. Suas vidas eram ocas. Foi, então, que cheguei à conclusão que brincar de enfeitiçar pessoas e objetos, comprar ingredientes mágicos para suas poções de rejuvenescimento, percorrer o mundo em cima de vassouras encantadas não têm sentido se elas não são capazes de cultivar laços de amor e afeto com os mortais que as rodeiam.
Infelizmente, com a mesma desenvoltura que elas invadem o shopping center e os consultórios de cirurgiões plásticos, abarrotam os divãs das salas de análise à procura de um sentido para as suas vidas...
E aqui digo eu: “Afeto, bruxas! O segredo está só no afeto”.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Notas musicais

Não só as palavras me tocam. Descubro que as melodias também.
Acho que uma das coisas simples da vida que me enchem de prazer é escutar música. A caminho do escritório, trocando de roupa antes de uma festa, num barzinho à beira mar, nos dias de chuva e nas manhãs de sol, arrumando meu quarto, aprendendo francês ou brincando de falar italiano, fazendo comidinhas gostosas, no caramanchão do jardim da minha casa... a sonoridade me acompanha em todas essas ocasiões. Penso que se fazemos o papel de atores no filme da vida, todos os lugares e momentos precisam de um fundo musical e uma trilha sonora. E, mesmo a música sendo sinônimo de alegria e descontração, até nos instantes down da alma uma musiquinha (clássica ou não!) sempre cai bem.
O que eu ainda não tinha descoberto de modo tão nítido é que o universo da música também nos faz mergulhar num universo profundo de sonhos e imaginação. A música nos faz viajar a outros lugares, trazer pessoas, arrancar sorrisos dos lábios e lágrimas dos olhos, viver personagens por alguns instantes, remexer o esqueleto e, claro, sonhar!
Quem nunca dançou na frente do espelho imaginando o “tum tum tum” eletrônico da balada mais tarde? Ou fechou os olhos, aproximou uma mão contra o peito, sentiu o perfume e o calor dos braços do amado, e ensaiou alguns passinhos de música lenta imaginando tê-lo em seu abraço? Que mulher, ainda, nunca se viu com um sapato alto, vestido preto fendado e uma rosa vermelha na boca ao escutar um tango?
Microfone com a mão fechada? Guitarra imaginária? Aula de dança? Cantar embaixo do chuveiro? Copiar letra de música no caderno? Tudo isso apenas evidencia que a Música, assim como as todas as Artes, é um meio de distinguir o ser humano dos animais e valorizar o nosso lado sentimento e a esfera emoção da vida.
Para mim, por exemplo, é impossível escutar Ronda e não me colocar junto do personagem que sentia aquela imensa dor ao vaguear pelas ruas da cidade à procura do amor sem encontrar. É impossível também não imaginar o bem que seria merecedor da “rosa mais linda que houver e da primeira estrela que vier”. Ou quem não gostaria se ele ou ela viessem “pro que der e vier” e ver a promessa cumprida de receber “o Sol, se hoje o Sol sair, ou a chuva, se ela cair”?
Por isso, hoje quero musicar e sonhar. Quero permitir-me “caminhar contra o vento, sem lenço e sem documento”, imaginar “la vie en rose” enquanto tomo um vinho embaixo da Torre Eiffel. Quero afastar “la soletudine” e ser acalentada com “não, não chores mais”, para, enfim, mandar minha tristeza ir embora e dizer “chega de saudade”.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Tecendo a vida

Acho que descobri esses dias que a inspiração de artistas, poetas, escritores é vinda, na maioria das vezes, de uma mansa melancolia por eles sentida antes da criação...
Esclareço que não falo sobre tristezas intensas ou profundas angústias, mas de uma dorzinha pungente na alma capaz de parar o ser humano por alguns segundos para despertá-lo e fazê-lo refletir sobre o sentido da vida e de sua existência.
Nesses momentos, somos tocados pelo lado oculto das coisas e passamos a enxergar com nitidez o imperceptível, tal como se desvelou para Carlos Aranha o relógio do Lyceu Paraibano, em sua bela “Crônica pela Cidade Amada”.
A descoberta da necessidade de sentir essa ‘mansa melancolia’ antes escrever se deu ao notar que o meu extremo bom humor da última semana não me permitia redigir. E, mesmo com vontade de escrever, o ruído do meu contentamento me impedia de ouvir o sussurro da folha de papel.
Afinal, falar sobre quê? As ações do escritório e o cenário do nosso fórum cível? A minha explícita predileção por Marina Silva, dentre os presidenciáveis? Ou o lançamento do extraordinário livro “Cinema por escrito”, organizado por Sílvio Osias?
Desde cedo, aprendi que escrever não é uma técnica, mas uma arte. E como toda arte, não é coisa que nos determinemos a fazer no limite de assuntos e de prazos. A palavra é que nos convida, só nos resta estar à escuta para atender ao seu chamado. Ai o texto acontece. Neste instante, somos possivelmente domados pelo chicote das palavras, como diria o poeta Sérgio Castro Pinto.
Por isso, o que me motivou a escrever o texto de hoje não foram as críticas de Barreto Neto sobre os clássicos do cinema internacional, mas simplesmente perceber, ao sair da Fundação Casa de José Américo naquela noite, a falta de um botão na camisa de algodão azul e florzinhas vermelhas que usava na ocasião, e a tentativa de recolocá-lo ao chegar em casa.
O fato de nunca ter pregado um botão antes... a procura da caixa de costura e a recordação de sua compra em Recife, dias antes de partir para a França... a cena de Penélope bordando a tapeçaria de dia e desfazendo-a à noite, enquanto aguardava a volta de Ulisses para Ítaca e para os seus braços... a música de Gilberto Gil... tudo isso: pensamentos soltos, imagens e melodias misturavam-se em minha imaginação enquanto observava atentamente o vagaroso trajeto da linha e da agulha. O que está escondido por trás das tramas dos bordados da vida? Qual o sentido da existência humana?...

terça-feira, 15 de junho de 2010

Escrever é preciso

Escrever é vital para mim. Assim como meus pulmões precisam de ar, sinto a necessidade de traduzir os reflexos e a sublime imprecisão dos meus sentimentos que dão cor e ritmo à vida. São com os meus sentimentos que eu toco o mundo e sou tocada por ele. Alegria e tristeza, dor e prazer, manhãs ensolaradas e noites chuvosas, tudo é vida... e é essa maravilhosa sensação de existir que busco celebrar com as minhas palavras.
Escrever é um hábito que remonta a minha infância. Comecei a relatar as impressões do meu mundinho particular quando ganhei um diário de folhas cor-de-rosa no meu aniversário de 8 anos. A partir dai, nunca mais deixei de transpor em palavras o que sentia. A adolescência chegou e a paixão pela escrita me conduziu ao encontro de diversos autores... suas palavras tocavam minha alma e, aos poucos, iam tecendo a melhor parte do que sou hoje. Comecei minhas descobertas com a poesia e as crônicas de Vinicius, e ainda conservo um livrinho que ganhei aos 14 anos, “Para uma menina com uma flor”, ao lado do qual mergulhava na personagem da menina e passava as tardes imaginando que o poeta tinha escrito aquilo para mim.
Mas foi através do olhar de Clarice Lispector que passei a enxergar a existência e o existir. Numa manhã de sábado, entrei no gabinete sedenta à procura de um livro e, ao pedir a mamãe uma sugestão, ela tirou da estante “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”. A partir de Clarice, deparei-me com a beleza da diversidade de tons que o cotidiano é capaz de nos revelar. Com ela, ainda, percebi que alma e sentimento não se deixam aprisionar na rigidez dos cânones literários...
Em seguida, vários outros autores começaram a fazer parte das minhas descobertas. Vieram Kafka, Dostoievski e Kundera para me apresentar o cenário do leste europeu, a cor do regime comunista e a vastidão de dores e dissabores dos seus personagens; Pablo Neruda, Garcia Márquez, Vargas Llosa e Isabel Allende me proporcionaram as descobertas da América Latina e a face da corrupção política nesses países; Pessoa e sua aldeia desvelaram-me uma riqueza de sensações a cada nova leitura de seus versos; a proximidade do vestibular me trouxe Camões, Bilac e Drummond; e o ingresso na faculdade de filosofia me fez penetrar nas leituras das tragédias gregas e no imaginário do Olimpo.
No tempo livre, passei então a ficar em casa escrevendo, à sombra do jambeiro. Ah, o jambeiro da minha casa... embaixo dele, quantas inúmeras histórias minha mãe nos contou no embalo da rede e de seus afagos. Mitos, heróis e reinos distantes desfilavam à nossa frente, do mesmo modo como são hoje transmitidos aos meus sobrinhos por meus irmãos.
E assim, escrevo para atender a este apelo vital. Escrevo com o prazer de eternizar o que senti naquele dia... desejando fazer a experiência de re-sentir, sentir outra vez, cada vez que eu leio. Mas, sobretudo, escrevo para não esquecer que sinto. Ainda que sinta sob o peso de um mundo que calcula.